quinta-feira, 11 de março de 2010

A felicidade banguela


Escrevia contos quando estava na faculdade, em Santos. É uma categoria que curto na literatura, mas para mim acabou servindo mais para exercitar minha veia ficcional e a elaboração de enredos. Dos mais de 50 que escrevi entre 1999 e 2003, gosto de uns quatro apenas.
O conto abaixo, Felicidade banguela, foi publicado em 2006 na Revista MTV:



A Felicidade Banguela


Hoje sonhei que meus dentes caíram. Eu soprava e eles voavam da minha boca feito ar exasperado, feito mentex da boca do Didi. Ao acordar, me deparei com uma porção deles em minha cama. Passei a língua pela gengiva e não os senti por lá. Vi sangue sobre a colcha de tecido claro e desesperei. Lembrei da dor que ignorei nos dias anteriores na gengiva, lembrei das palavras da minha avó dizendo - já com sua dentição anulada - que um dia eu ia perder os meus. Na minha casa não havia sequer um espelho que pudesse me mostrar minha versão banguela. Vi o sangue escorrendo pelo meu peito, minha barriga, meu pau. Tinha sangue dos meus dentes no meu pau. Saí em busca de algo que refletisse, qualquer coisa que pudesse me mostrar como eu era. Na TV desligada pude ver apenas as machas escuras caídas da boca, pelo meu peito, barriga e pau. Não me ocorreu mais nada. Não liguei pra ninguém. Fiquei bons minutos pensando no que fazer sem os dentes. No que fazer para ver-me sem eles.

Deitei e procurei dormir um pouco mais. Apesar do desespero, consegui desfalecer. Ao acordar novamente, tudo permanecia igual: sangue e os dentes espalhados na cama. Constatei que dali por diante minha fala assobiaria. Olhei para a cômoda que ficava ao lado da cama e vi meus CDs. Peguei um que não recordo o título. Olhei e constatei minha imagem sem dentes, banguela, sem poder mastigar, só gengiva, só sangue. Era real, perdi os dentes.

Sorri.

Lavei-me, sacudi anti-séptico bucal, penteei os cabelos, coloquei a melhor roupa e saí de casa. Na rua, as pessoas me olhavam com algum respeito, estava bonito. Me senti lisonjeado aos olhares respeitosos. Uma bela mocinha de cabelos negros e curtos, de bolsa tira-colo e peitos que saltavam o top me perguntou as horas. Levantei um pouco a manga do paletó e, cuidadosamente querendo mostrar minha boca, lhe informei as horas com um sorrisão. Ela também riu. Olhei para a frente, suspirei e segui feliz minha nova vida sem dentes. Na volta pra casa, joguei fora a minha escova de dentes. A única pergunta que me fazia era: como é que vou mastigar carne de novo? Lembrei de minha avó e de como ela fazia um gesto engraçado mastigando a gengiva. Lembrei do Costinha também. Pensei que poderia muito bem viver assim, feliz sem os dentes.

Fui a um restaurante e lá pedi um filé para experimentar essa nova sensação. Sempre achei os dentes fossem meramente estéticos. O garçom chegou com o meu pedido. O arroz e salada entraram em minha boca com a aflição e pressa que me era peculiar na hora de comer. Eu comia feio. Não me sentia feliz mastigando exaustivamente pedaços. Cortei o filé em pequenos pedaços e os fui colocando na boca. Sentia o gosto deles no céu da boca, deslizavam com óleo e manteiga. Gostoso. Me senti pela primeira vez bonito ao comer. Ao engolir, a sensação era melhor ainda. E no final de tudo, adeus fio-dental. Não sei como vivi tanto tempo com dentes. Eles incomodam, requerem cuidados especiais e caros tratamentos odontológicos. Sem contar as malditas dores de dente. Sisos servem para ser arrancados. Porque os outros não? Lembrei de uma frase de um escritor famoso que dizia que nem os grandes filósofos, os mais intelectuais e mais sábios do mundo suportavam uma dor de dente.


Feliz sem os dentes. Na hora de beijar seria melhor ainda, preferível se a beijada também for banguela. Só falta isso, arrumar uma boca banguela pra beijar. E viveremos assim, para sempre, felizes sem os dentes.


2 comentários:

natalia brabo disse...

Hey, um conto velho conhecido!

Acho que, a felicidade é um sorriso banguela, afinal não se pode ter tudo. (filosofia rasa, só para brincar com o título mesmo).

andro baudelaire disse...

muito doido damaso

muito doido mesmo