terça-feira, 4 de maio de 2010

Sabe aquela coragem? *




A irritação já escorria da testa naquela manhã com o ar-condicionado do carro vacilando e o calor começando a dar as caras às 9h. Na Doca de Souza Franco, avenida conhecida de Belém, o trânsito parecia de uma megalópole. Ao me aproximar mais da travessa Boaventura da Silva reparei em sirenes, bombeiros, viaturas policiais e o apito nervoso de alguém tentando colocar ordem ali. Houve um suicídio.

A paciência tem que ser redobrada nessas horas em que a gente se depara com o caso de alguém que utilizou todas as possibilidades e optou por dar cabo à sua vida, como uma forma urgente de remediar a dor. A polícia tinha que fazer o seu trabalho. Os bombeiros idem. A companhia de manutenção da rede elétrica do bairro (meu bairro) também – o corpo caiu do sétimo andar e arrebentou alguns cabos de eletricidade. E os vizinhos, que junto a curiosos se amontoavam próximo ao corpo, foram para a rua buscar o que fazer e acompanhar o caso. E a paciência naquela manhã era a única forma de respeito.

Toda vez que me deparo com um suicídio penso na vida. Não existe julgamento que marque um suicida como um covarde ou alguém fraco, como pregam os mais religiosos. Existe sim uma coragem imensa em se tirar a única coisa que lhe foi dada. Não temo por suicídio, mas pela dor. Temo que ela chegue a um nível que ultrapasse todos os limites racionais e que apenas o coração tome decisões.

Minha namorada me disse que havia visto o corpo e foi a primeira a me contar. Ela estava triste, assim como eu que passei de carro, vi a cena e deduzi o que tinha acontecido. Hoje li no jornal o caso. Curiosa a abordagem hipócrita que os cadernos policiais fazem do suicídio – reza a lenda que suicídios publicados estimulam outros suicidas. Será que uma pessoa que tem essas tendências precisa do incentivo da imprensa para tomar coragem? Editei caderno de polícia por dois anos e a ordem que sempre tive foi de não publicar um suicídio. Mas é curioso como os que acontecem em bairros de classe média (ou centrais) são noticiados de outra forma, falando em acidente ou suspeita de assassinato. Suicídio na periferia, esse sim não é noticiado.

Quem procura os jornais sabe o que vai encontrar. Se abro o caderno policial é para rir de bandidos que se deram mal e foram para a cadeia ou para ver a reação da população fazendo justiça com as próprias mãos. Não quero abrir um caderno policial para me deparar com estupro, assassinatos, tripas para fora e tudo aquilo que enche os olhos do povão. Agora, eu sei que existe essa realidade, mas ninguém precisa dela estampada todo dia na mesa do café da manhã.

É preciso culhões para encarar a realidade sanguinolenta da violência urbana. Isso a periferia tem, e talvez seja onde aconteçam os crimes mais bárbaros e é onde os cadernos policiais façam o maior sucesso. Mas o que rola na classe média, em bairros que residem figurões e “pessoas bem de vida”, é que a realidade é a de novela da Globo. E é quando vem um suicídio e mexe com todo o dia das pessoas daquele bairro. Violência urbana não é só perder o celular de última geração, o notebook ou o carro caro e as armas que nos são apontadas diariamente. Violência urbana também é ver o sangue escorrer pela calçada que abriga o corpo que caiu, e onde a vítima é também o culpado.


* Título tirado de música da banda baiana Brinde.

3 comentários:

Lorena Romão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lorena Romão disse...

Pra ler outra coisa na tentativa de me distrair da tese, acabei parando aqui por acaso e olha o que encontro: Um blog teu falando de suicídio, o assunto da tese!
To estudando justamente o suicídio enquanto imitação, o Efeito Werther.
Coincidência boa...
Volto aqui mais vezes, com certeza! Gostei demais dos teus textos.
Beijo

Luize disse...

É o q pensei um dia desse sobre quem tira a vida. A vida é boa e ao mesmo tempo ruim, pq possui as duas coisas.
A linha entre a loucura e a lucidez é ténue e por isso as pessoas num momento de desespero, onde a dor sentimental chega a ser fisíca, é aí então que comentem essas coisas contra elas mesmas =/

Muito triste isso. Tem um pouco de culpa delas não saberem lidar com situações, um pouco de culpa da pressão da sociedade.. um pouco de tudo...