“No presente a mente, o
corpo é diferente
E o passado é uma roupa
que não nos serve mais”
Belchior
Adoro tardes de sábado de julho. Elas são perfeitas para
organizar a vida de quem mora em Belém e foge da filial do inferno instalada
nas praias paraenses. No sábado, obrigado pela compra de uma estante nova, resolvi
rearranjar meu tesouro particular de CDs, DVDs e livros, e dei de cara com o
passado, ele estava ali escondido nas páginas de livros que devorei, livros que
nunca li e livros com páginas propositalmente dobradas e frases grifadas a
lápis.
O hábito da leitura floresceu em mim de modo natural e sem
forçar barras. Cresci me deliciando com títulos curiosos na estante que meu pai
ostenta até hoje – agora em sua sala, não mais na nossa. De lá puxei alguns que
serviram para formar minha personalidade e apontar para onde iria meu gosto por
literatura. Li o “Vampiro de Curitiba” (Dalton Trevisan), “O apanhador nos
campos de centeio” (J.D. Salinger), “Vidas secas” (Graciliano Ramos), “O
Bestiário” (Julio Cortazar) e uns contos do Machado de Assis. Dessa biblioteca,
surrupiei um ou outro livro de meu pai, entre eles “O santuário”, o único
romance comercial de William Faulkner. Esse guardei no meio dos outros para ler
mais pra frente - e naquele sábado, na foto guardada dentro dele, lembrei de
quando isso aconteceu.
Empoeirados e desprezados pelos últimos anos de atenção voltada
ao computador, filmes, discos e a intensidade da vida profissional, minha pilha
de livros só aumentava e aquela intenção jovial de conhecer mais histórias e
estilos de escrita ficou no passado. Só não tinha me dado conta que no meio
daquelas páginas estavam as minhas mulheres.
Sentado e passando o pano para tirar a poeira, lembrei que alguns
traziam recortes do passado. Fotos, poemas, cartas de amor, caligrafia
caprichada e a emoção devolvida de uma inocência que sumiu no ar. Os livros estavam
diretamente ligados aos regallos, com
histórias que se cruzavam, que nos ligaram e que foram pautas de várias
conversas na mesa do jantar, do bar ou de uma cama reflexiva.
Colecionei amores nas páginas dos livros que li em folhas
dobradas, frases riscadas, fotos marcando diálogos, cartas de amor escondidas e
poemas panacas escritos e não mandados. Talvez eu faça parte das últimas
gerações que se permitem esse tipo de surpresa e emoções, a última que não
deposita todos os seus bens em um HD e que, por mais que nunca dê conta de ler
tudo o que compra, faz do ato de tirar poeira dos livros um momento verdadeiro que
dá um sentido diferente à vida.