domingo, 31 de julho de 2011

Antes que se perca a memória





Quero uma mina de Marte
Que seja sincera
Que não se tatue, nem fume
E nem saiba sequer
O que é Rock'n Roll...

(Marcianita - J.I. Marocne)

 
“Nunca havia pensado em escrever um livro. Tenho muitos amigos escritores e nunca me senti capaz de escrever um livro. Até nascer minha primeira neta. Foi quando resolvi escrever minhas memórias, para que elas nunca se apagassem”. Freddy Ginebra disse isso no almoço, depois que entregou a cada um dos produtores que ele estava recebendo em sua cidade dois de seus livros. Um era de conversas com pessoas como Jorge Luiz Borges, Mario Benedetti e Gabriel Garcia Marques – que acredito que sejam os amigos escritores a quem ele se referia. O outro livro se chama “Antes de que pierda La memoria”, lançado pela Casa de Teatro, sua fundação cultural privada, em Santo Domingo, que lança livros, discos e promove mostras de teatro e cinema. Freddy, do alto de seus 67 anos, é uma figura inspiradora para quem um dia resolveu trabalhar com cultura.

Cheguei perdido na noite de quinta-feira em um dos eventos que fazia parte de toda a programação que ele e sua Casa de teatro preparam para receber os produtores culturais de 12 países da América Latina. Encontrei Felix Allueva, meu elo com aquele encontro. Félix, em sua gentileza infinita, saiu me apresentando para todos os outros produtores que estavam por lá. Até chegar em Freddy, um senhor grisalho de olhos azuis que me recebeu com um beijo no rosto. Perguntou como eu estava e se eu queria beber algo. Disse que uma cerveja, e então ele chamou a mocinha de uma das barracas de bebida e disse: “este es Marcelo, darle cerveza”.

No outro dia, no mesmo lugar em que ele selecionou 30 artistas para se apresentarem, era ele quem ia para o palco apresentar. Na verdade, Freddy chamou um humorista de stand up comedy para fazer essas apresentações, mas era ele quem sempre ia e roubava a cena. O humorista se chamava Carlos Sanchez, e me pareceu uma espécie de Rafinha Bastos da República Dominicana - com a diferença de que o dominicano era realmente engraçado e não um palerma convencido.

Soube da importância de Freddy ao chegar no aeroporto, quando um senhor com uma placa escrita Casa de Teatro nos esperava no corredor, antes mesmo de chegar ao saguão. Estava no vôo comigo mais três pessoas da Costa Rica que chegavam na República Dominicana naquela tarde chuvosa de quinta-feira. Nos levou até a sala VIP do aeroporto. Ainda meio perdido na confusão de sotaques latinos, ouvia se falar muito no nome de Freddy, que já havia lido nos emails trocados entre os produtores daquele encontro. Na van, a senhora que nos recepcionou passava o telefone para uma das pessoas da Costa Rica, Silvie. Ela, então, passou o telefone para outro produtor e percebi, naquele momento, que Freddy era o Padrinho, a grande figura da República Dominicana.

Durante o jantar da sexta-feira ele nos avisa que teríamos que acordar às 6h de sábado, pois pegaríamos um ônibus e depois um catamarã (que não é o mesmo que você está pensado, e sim uma lancha apertada, rápida pra caralho e que deixa rapazes de apartamento com o cu na mão) até uma ilha belíssima. Como a noite anterior foi longa, todos chegaram quase às 6h no hotel. E às 7h lá estava ele, de pé e colocando todo mundo no ônibus. Fui cumprimentá-lo com a mão estendi, ele jogou a mão para o lado e deu aquele abraço. Não tem mau humor matutino que resista a Freddy. Ônibus, praia, lancha, praia, barco, sol. E lá estava ele, em pé e contando histórias que todos os outros produtores paravam para ouvir com a atenção de um estudante fissurado em uma aula bacana.

À noite, quando já achava que não teria mais fôlego nem para ir jantar, lá está ele de novo. Elegante e sorridente. Nos conduziu para o seu teatro, apresentou o espetáculo de dança contemporânea e sentou-se. O espetáculo era realmente bom. Bom até para mim que não sou chegado a teatro e muito menos dança. Mas enfim, você sabe como é teatro, sempre rola um peitinho. E é claro que no final todas as dançarinas ficaram nuas. Dom Freddy é realmente um homem de bom gosto.

Lembrei do dia em que cheguei e estava indo para o hotel na van. Cecília, a senhora que nos recebeu e que pareceu ser o braço direito de Freddy, ficou puta da vida porque o motorista, para cortar caminho, passou por dentro de uma periferia. Ela disse que não queria mostrar aquela parte de sua cidade. Eu entendi sua preocupação, apesar de não concordar. Não tem como fugir da realidade de um país deslumbrante mas que carrega a medalha de bronze de terceiro mundo. E a mim aquela realidade não importava. O que realmente importou foi conhecer um homem que viveu a vida inteira promovendo a cultura de seu país, com dinheiro do bolso, sem ajuda do governo e contando com sua rede de amigos.

Soube na noite que cheguei que no almoço daquele dia estava na mesa o conterrâneo dominicano Juan Luis Guerra, o astro mais conhecido nascido naquela ilha. Mas como disse Ritzza, a simpática produtora de Honduras, ao me consolar: “naquela mesa quem importava mesmo era Freddy”.


Freddy brinda de cuba libre na bela jarra da Se Rasga

sexta-feira, 29 de julho de 2011

O Bom Remédio é amargo


A mão que balança a benga (Bom Remédio-PA)
 
“Ah, não te avisaram que o meu carro está sem DVD?”. Se fosse só o DVD eu estaria apenas puto da vida, mas a van que levou eu e mais 12 pessoas para Marabá, no final de semana passado, era o personagem principal de uma aventura estradeira, suada, reggaeira, esfumaçada e cheia de referências cretinas e piadas que surgiam no ar poluído e cheio de poeira. A van de 16 lugares, preta, com calotas pretas e cheia de adesivos cristãos era o nosso “Caveirão”, que logo que olhei não imaginei que seria o grande protagonista da viagem insólita poeirada adentro.

A van levava, além de mim, o roadie, o jurado, o apresentador, o cinegrafista, o fotógrafo e a banda convidada para o evento que a Se Rasgum, produtora que faço parte, estava realizando em Marabá. Tudo seria banal se todos esses personagens acima não fossem todos amigos (na ordem: Ronny, Vlad, Randy, Brunno e Renato Reis) e se a banda não fosse o Juca Culatra e o Cristal Reggae - e entre eles um francês muito doido chamado Laurent. Ah, sim, esqueci dizer: tinha também o motorista garotão e sua namorada, a Tieta.

Juca Culatra em um click impaciente do Damasound
 
Com o ar-condicionado fraco, resolvemos ir de janelas abertas respirando a fumaça que vinha de dentro e de fora do carro. Mas não há nada que o bom humor e a trilha sonora não ajudem. Como a noite anterior havia sido longa para quase todo mundo que estava no Caveirão, as primeiras horas de viagem foram de cochilos e despertadas violentas com o motora freando em cima do buraco ou passando cuns caralho. “Eu abria os olhos e achava que aquela poderia ser a minha última visão desse mundo”, disse Renato. O primeiro pneu furou e paramos para consertar e iniciar a seqüência de piadas sobre refinaria de oxi no interior do Pará. Tudo era oxi. Desde os caboclos que fritavam inocentemente uma calabresa aos que passavam de moto com olhares curiosos em cima dos forasteiros.

O primeiro almoço não foi ruim. Paramos em Tailândia (infelizmente não era a mesma dos rádios relógios, guitarras vagabundas e brinquedos eletrônicos) para um belo rodízio. “Ah, tem mais de 300 km ainda para Marabá”, disse a moça do caixa. Só deu pra dar um suspiro – alguns deram uns peidos - olhar o céu e ver que ele radiava alegria no tom azul, a mesma felicidade que ainda não corria dentro do Caveirão. Naquela hora que se seguia do almoço, o violão passou de mão em mão e começou uma sessão de reggae.

E aí furou o segundo pneu. E aí que a viagem começou a ter graça. O borracheiro consertou, mas quando estava enchendo rolou o boom do estouro. Foi então que as risadas calaram, tentamos descobrir o nome do lugar, e Le se chamava Bom Remédio. Era tarde de sábado e só tinha um borracheiro de plantão e a mercearia de Dona Irce abertos. A igreja estava fechada, e todas as 30 ou 40 casas que tinham naquele lugar, perdido no meio do nada, não pareciam trazer mais vida ao lugar. Celular não pegava, o ar-condicionado também não. O motorista garotão esperou uma van passar e se mandou atrás do pneu. Tieta ficou. A gente ficou. E não tinha o que fazer, só esperar a sorte chegar do lado direito ou esquerda da estrada que margeávamos.

Cadê o padre?

Violão na mão e começa uma seqüência de axé dos anos 90. Depois que perdeu a graça – e demorou muito para acabar o repertório micareta que espetava dentro de nós, ficamos por ali, vagabundeando e ouvindo causos de gente carente. Apareceu um vampiro, um bêbado carente doido por uma roda de violão, a Bebê Adocyl, a Dona Irce e seu marido remendado, além do pergonagem principal, o psicólogo.

O psicólogo era um caminhoneiro paranaense chato pra caralho (mas que o Randy não parava de achar o sotaque dele “gostoso”). O psicólogo falava muito e não resolvia nada. Dava palpite em tudo, tirava piada sem graça, se gabava por vender, vez ou outra, uma arma contrabandeada ali pelas redondezas, e disse para a gente que era ele que transportava a madeira do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. A mentira chegou ao ponto dele dizer que um policial federal não o multou depois que ouviu a voz do ex-presidente no telefone.

Três horas já se passavam e eu já olhava o céu. Se anoitecesse estávamos bem fudidos. Cheguei a parar algumas vans parta ver se nos levaria até o destino final. Falei isso para a Tieta, que calou o choro na hora e depois estendeu uma toalha amarela no volante e desandou a chorar. O Randy disse que ouviu ela dizer que tinha mais de um ano que não chorava. Tieta não foi feita da costela de Adão.

A água já tinha acabado na venda da Dona Irce e eu já estava na quinta lata de Fanta Laranja naquele calor infernal. Brunno chegou a cogitar que era só dar mais um tempo que a água chegaria. Com a desgraça instalada, não nos restava nada que não fosse rir de qualquer merda. E num daqueles momentos em que cérebro já fritou eis que chega uma van e de dentro dela sai o motorista garotão com dois pneus. Já era 17h30, estávamos salvos. Chama o borracheiro logo e vamos nessa. Como? Onde ele está? Ah, ele foi jogar bola. Sábado à tarde é sagrado para a equipe de Bom Remédio. Muito chateados por desfalcar a equipe para uma bobagem, tivemos que fazer isso e seguir viagem. Mais cinco horas de viagem e, enfim, chegamos a Marabá. 

Randy , Vlad e as melhores rabiolas do Pará

Já havia passado por uma dessas antes, mas meu destino era a cidade de Natal (Meu Deus, mas que cidade lianndaa), um puta resort e um festival legal. Nessa era mais trabalho e uma Seletiva com bandas da região que fizemos (e muito bem feito) no dia seguinte. E ainda tinha a volta... Mas quem sobreviveu ao Amargo Pesadelo à Colheita Maldita passaria por qualquer coisa.

Na volta o tempo de viagem foi quase o mesmo, pois o motorista garotão estava se cagando e parava de meia em meia hora pra batizar as louças da Belém-Brasília. Mas foi legal porque aí já estava todo mundo na merda mesmo. Mas pelo menos tinha o refrigerante Rivinho, uma tentação deliciosa de guaraná na Belém-Brasília. E como disse o bom e velho Randy, “quem não gosta de Rivinho bom sujeito não é”.

Quem bebe Rivinho vai pro céu

segunda-feira, 11 de julho de 2011

O que era pra ser

Cheguei na cozinha um pouco antes do almoço. Meu pai estava sentado e lendo algo que me parecia muito familiar para minha mãe: “Angela, sua peidona, tu morreu pra mim. Porra, Maicon!”. Era um bilhete que escrevi no auge do que posso chamar, hoje, de minha primeira paixão. Foi por Angela, a vizinha de sete anos que ao invés de me escolher para perpetuar em mim uma passagem inesquecível pela infância escolheu o Maicon, meu amigo de nome acabocado e que, maldito seja, tinha nove anos já. E eu apenas sete.

Preferi atribuir minha perda a idade, achando que Angela só queria Maicon por ser dois anos mais velho. Mas da capa de loser me restou uma caneta afiada na mão e muita emoção para despejar em meus desafetos. Mandava ver e jogava recados pela rua. Esse papel meu pai pegou, para minha vergonha na época e para seu deleite eterno. Na cozinha, ele e minha mãe cagavam-se de rir. Eu, quando cheguei, dei uma olhada no bilhete, que ainda tinha um desenho fajuto de um coração flechado, e entrei na gargalhada, que foi calada segundos depois, quando lembrei que Angela morreu naquele mesmo ano, em um acidente de carro com a família. Todos sobreviveram, menos meu anjo.

Naquela caixa havia mais petardos de um coração despedaçado e uma tentativa forçada de ser um escritor. Tudo eu escrevia. Havia desenhos também, presentes para os pais e cartas de amor que nunca foram entregues ao destinatário. E talvez não tivesse que ser assim. Acho que o melhor destino de tudo aquilo era caixa que meu pai carrega e se reabastece de emoções de vez em quando.

Ficamos na sala lendo e rindo de tudo. E entre a papelada velha e colorida, que também tinha cartas engraçadas da minha irmã, meu pai guardou minhas redações da escola. Senti orgulho de ver uma redação corrigida pelo professor com uma observação no final, elogiando minha evolução e apontando para um estilo próprio de escrita. Foi quando me perguntei se realmente segui o caminho certo e se minha estrada não era a de um escriba mesmo. Cada dia que passa tenho mais certeza de que meus investimentos pessoais se inverteram.

Nunca vou saber para onde teria ido, no que teria dado ou o que seria o certo. De qualquer forma, acho que a estrada ainda existe e me faz olhar para ela de vez em quando.  Tenho a impressão de que acertei em algumas apostas e deixei de jogar outras partidas. Sem esse papo de deixar na mão do destino, mas às vezes é melhor acreditar no que era pra ser.