quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Darklands no Bataclan




 

No domingo de 5 de dezembro de 2021, fui ver meu quarto show da minha banda favorita, The Jesus and Mary Chain, no Bataclan, em Paris. Num domingo chuvoso e frio, eu e minha amiga, Irema, descemos do metrô e nos localizamos pelo mapa do celular até o acesso ao Bataclan. Quando nos demos conta, estávamos diante de um pequeno túnel que levava ao acesso da rua lateral, onde também ficava a saída de emergência da casa de shows. Foi inevitável vir à memória, imediatamente, os vídeos que circularam depois do atentado que tirou a vida de 90 pessoas no Bataclan, e que estavam ali pelo mesmo motivo que eu: ver uma banda que gosta muito. Por aquela rua, na noite de 13 de novembro de 2015, passavam pessoas sendo carregadas por amigos e deixando trilhas de sangue no chão. Quanto mais nos aproximávamos da entrada, mais memórias dos vídeos me cutucavam a mente, como pessoas que moravam nos prédios ao lado e filmaram, de cima, a fuga desesperada pela saída de emergência.

 

Na fila de entrada, com pessoas animadas para entrar, o sentimento se misturou e entramos tentando driblar a energia alexandrina. Na entrada, ao deixarmos nossos casacos na chapelaria, chequei os bolsos da minha jaqueta para ver se teria alguma coisa ali que eu pudesse deixar pra trás, caso precisasse correr sem o casaco. Foi um pensamento involuntário, movimento do subconsciente.

 

Faltava cerca de 10 minutos para a banda convidada, a ótima Rev Magnetic, de Glasgow, Escócia - mesma cidade do Jesus and Mary Chain. O bar fica numa parte mais alta, uma espécie de mezanino, onde pedimos duas cervejas e ficamos ali, em um longo silêncio até o começo do primeiro show. Eu nunca havia ido ao Bataclan, mas aquela área em que eu estava era familiar por contas das fotos e vídeos que vi sobre o massacre. Ali era a entrada, e a parte mais alta, onde se tinha uma visão maior sobre toda a casa e plateia, e foi onde um dos terroristas iniciou o fuzilamento. Minha amiga é psicóloga e trabalhou com vítimas daquela noite sangrenta. Para ela, claro, o motivo do silêncio era ainda mais profundo. Com a Heineken a 6 euros (custosos 40 reais), tratei de virar a primeira e correr logo pra segunda para afastar aquele sentimento e tentar mergulhar de cabeça no que estaria a vir, que seria o show de uma das bandas que mais amo tocando o meu álbum favorito deles, ironicamente chamado Darklands.



Nos localizamos em frente à housemix, meu lugar de praxe para ver bandas que amo. Na hora do show eu já tinha virado umas 5 cervejas e meu espírito estava mais do que solto para me entregar ao momento. Foi o álbum inteiro, da primeira até a última música, começando com Darklands e a ironia da ocasião “oh something won't let me go to the place where the darklands are”, tirando a verdadeira poesia que sempre me embalava nessa música. Mas cantei junto, de olhos fechados e espantando a treva. Então vieram todas as outras: Happy When it rains, April Sky, Down on me, On the Wall etc. Depois, deixaram palco e voltaram para mais uma série de hits, encerrando com Just Like Honey, deixando o coração de um indie de meia-idade em pedaços. 

 

Claro que o sentimento pesado que havia entrado com a gente no começo da noite, foi embora e o tempo virou. Só me lembrei de novo quando vi as portas de emergências laterais abertas para ajudar na saída do público. Talvez já fosse um procedimento anterior, mas pesou novamente. Por mais que aquele fosse um momento especial, e uma ida ao Bataclan traga sentimentos de felicidade, é impossível não sentir a energia pesada do ataque em massa causado pelo Estado Islâmico. Mas ali, naquela noite, era Jesus no palco.



Momento doidão pós-show nas clássicas cabines de fazer cartão de transporte 



terça-feira, 6 de julho de 2021

Big Jeff Show



2018, Brighton. A banda irlandesa Fontaines DC tocava em um dos diversos pubs e casas de shows que abrigam apresentações do que vai acontecer de mais importante de cena mundial de música indie, no The Great Escape Festival. Espremido na porta, tentando ver alguma coisa daquele show num espaço não privilegiado, noto a presença de um homem loiro, muito alto, ligeiramente largo, que ocupa boa parte da visão na frente do palco. Em algum momento, entre as músicas, alguém da banda (que não o recluso vocalista Grian Chatten) fala no microfone algo como uma piada interna, ou um cumprimento, naquele momento que se entende que já havia uma cumplicidade entre aquele fã e a banda. 


Além de sua altura, cabelos e o rosto que expressava generosamente alguma inocência que, a mim, o associava ao Slot dos Goonies. O braço que empunhava socos no ar, embalando o agito punk, estava tomado por pulseiras de muitos festivais. Eram tantos que seria impossível não notar a presença de adereços como uma marca forte no seu visual. Depois notei que as pulseiras eram uma espécie de objeto de ostentação indie que ia além de ser simplesmente um rato de festivais. 


Geralmente, nos shows, estava acompanhado dos outros produtores brasileiros convidados para o evento que me acompanhavam na delegação brasileira, mas nos outros dias, em muitos dos shows que escolhia assistir só, lá estava ele. Sempre com sua mochila, o guia do festival em uma das mãos e uma garrafa de água de 2 litros na outra, que parecia uma garrafinha em sua enorme mão. Foi quando percebi que se ele estava vendo aquele show, provavelmente eu estava no lugar certo também. Ele começou a virar meu termômetro, e uma referência fácil de achar. The Great Escape Festival tem mais de 300 apresentações acontecendo simultaneamente, em vários lugares da pequena e charmosa Brighton, o que torna quase impossível conseguir ver ao menos 30% dos shows em todos os dias. 


Fui convidado novamente em 2019 para integrar a delegação brasileira convidada pelo British Council. E no primeiro show foda que assisto, quem estava por lá? Falei com minha amiga “fica ligada nesse cara, a gente ver ele em muitos shows”. E era sempre assim, sozinho, feliz, pirando na primeira fila das bandas indies seminais que povoavam aquela programação. 


E então, por esses dias, acompanhando a programação do Festival In-Edit em casa, assisti ao documentário Don’t Go Gentle: A Film About Idles e em determinado momento ele surge na tela dando entrevista: Jeffrey Johns, artista de Bristol, mesma cidade do Idles. Foi como se eu estivesse revendo um grande parceiro, um amigo de longa data que sequer sabia o nome. Mas agora ele tinha um nome. E, pesquisando, cheguei a uma matéria do The Guardian que revela todo o seu talento e seu apelido Big Jeff, um artista plástico com um trabalho belíssimo e super sensível. Sua última exposição pode ser visitada pelo seu site.





Terminei de ler a matéria com o coração cheio, vendo que aquele cara era, acima de tudo, um grande fã de shows e um amante de música, que passou a pandemia criando, produzindo arte e esperando ansiosamente pela volta dos shows ao vivo. 


Eu também espero ansiosamente, Big Jeff, e que a gente se veja ainda em algum show.