segunda-feira, 13 de abril de 2015

Houve uma vez Galeano




"A noite/1

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta."

Valeu, Galeano.

Não nos conhecemos pessoalmente, embora eu tenha ido ao Café Brasileiro, em Montevidéu com essa intenção.



De todo modo, te conheci na minha ficção:



Era comum nos lugares mais acolhedores da cidade ter uma garçonete bela e simpática para dar uma vida a mais ao ambiente. No Café Brasileiro, uma jovem de olhos verdes expressivos, pele morena e cabelo bem cuidado recebia a todos com um sorrisão que faria os mais ricos quererem comprar o estabelecimento com tudo o que tinha dentro. Ou os mais inspirados e pobres mandarem poemas apaixonados. No final, com ou sem dinheiro, todos gostariam de ter um pouco mais do que um café e uma media luna mediante ao olhar apaixonante de sua servente.

Com ela fui mais incisivo e não titubiei no espanhol que pediu com classe um café irlandês e uma água com gás. Pelo sorriso que ela deu, aquele não era um pedido muito comum, mas a bebida entrou com a coragem que eu precisava ter na Esquila de Los Chivitos. Foi então que vi um homem que entrou no recinto, colocou o sobretudo na cabideira e sentou só em uma mesa isolada no canto do café. Ele aparentava estar perto dos 60, mas a careca brilhosa, altura, magreza e o olhar majestoso conferiam a ele uma segurança e experiência que eu, um dia, gostaria de dispor. Ele chamou a garçonete, que o atendeu com um sorriso mais aberto do que para os outros clientes, e fez seu pedido. Mesmo com a cara sisuda, disse alguma coisa que a fez gargalhar levemente, olhando para os lados e levando a mão até a boca em um gesto embaraçado, já que o local limitava este tipo de intimidade com clientes. Ele, então, tirou do bolso do paletó uma caneta e um bloco de anotações, em que eu poderia jurar que havia idéias boas. Poderia estar traçando o orçamento do mês, mas preferi crer que se tratava de um escritor, poeta ou um galanteador de prestígio, desses que tornam a existência de um escriba um mero exercício para se adquirir hábitos naturais, que não se aprendem no dia-a-dia. Revezando entres os goles no café irlandês e na água com gás, me pus a estudar o homem. Ele me percebeu o olhando, mas não se incomodou e voltou a vista para o papel, que eu daria a vida para saber o que estava sendo escrito. Ele alternava o papel com as curvas da garçonete que circulava atendendo os clientes com a mesma simpatia. Quando passava por ele, no entanto, o sorriso era outro.

A hora do almoço se aproximava e eu já não dispunha de muito tempo para a aparição do sinal. Foi quando ele chamou a moça, deixou o dinheiro da conta em cima da mesa, apontou para o papel onde trabalhava sua concentração e, elegantemente, vestiu o sobretudo e saiu do café. Ela contou o dinheiro, guardou a gorjeta e então foi ao papel. O vermelho em seu rosto foi o sinal que eu estava esperando. Poderia ser um desenho, um poema, um conto, uma cantada. Eu precisava saber do que se tratava. Ela foi até o balcão e, sem tirar o rubor do rosto, mostrou o papel ao outro funcionário que, por ser do gênero masculino e sem a graça dela, ocupava o posto de caixa. Ele riu e balançou a cabeça positivamente. Seja lá que merda o homem tivesse riscado no papel, a coisa parecia ter funcionado. Ouvi quando ela disse que aquela era a quinta vez que ele fazia a mesma coisa. Definitivamente era uma conquista, e o objetivo parecia estar próximo. Pedi a conta e, sem meandros, soltei uma de desentendido para saber que porra tinha acontecido ali.

- Permison, puedes me dar una informacion? Creo que conoço este hombre, no sei se es un escritor.

- Si, elle es un escritor uruguayo. Vien siempre acá.

- Como elle se llama?

- Eduardo Galeano. 


Foto do jornal Zero Hora