De lá de cima, na pequena ponte que permite a passagem de um lado para o outro do salão principal do Hangar, eu e Gustavo olhávamos ao início do show da banda local Vinil Laranja na noite de domingo. Naquele momento comentei com ele: “esse deve ser o último, eu realmente cansei”. Dias depois ele me lembrou disso e falou que sentiu que naquela hora eu realmente estava abandonando o navio. Era o terceiro dia da sexta edição do Festival Se Rasgum, aquele pelo qual sou odiado, adorado, invejado, incentivado, mal tratado, simpatizado e antipatizado no meio musical de Belém. Gustavo havia tomado a mesma decisão dois anos antes, assim como Marcel. Eu ainda não conseguia me livrar do vício.
To vendo o ano chegar ao fim e me deparando mais uma vez com as escolhas que fiz, questionando o sentido de tudo isso e onde é que essa porra vai dar. A amargura dessas primeiras linhas confessionais - que todo ano relato após a experiência de ser um dos protagonistas do Festival Se Rasgum - são embaladas pelo cansaço, pela falta de paciência com o mesmo nhem nhem nhem de sempre e, confesso, pela paixão. Ô amor de puta.
Andando pela feira que ligava um palco ao outro encontrei com Totonho, o cabra. Ele era uma das minhas grandes apostas para esta edição. Assisti a um show uma vez em uma festinha no carnaval no Recife, uma apresentação realmente visceral, direta e rica em timbres, sotaques e referências. O show, lá em Recife, acabou com “Carimbó do macaco”, do mago Pinduca. Trocamos uns emails engraçados. E lá estava Totonho, finalmente falando comigo, depois de um show que me encheu de orgulho.
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Totonho foi um dos que fez a coisa toda a valer a pena |
Por ali passavam uns garotos de 14 e 15 anos que conheci naquela semana, antes de um show da banda que agora faço parte, The Baudelaires. Na ocasião, eles me perguntaram se conseguiriam ver o Lobão, e disse que sim, mas com autorização e um responsável acompanhando. Falaram felizes que a mãe de um deles estava lá acompanhando o pequeno bando. Todos estavam com o CD de Totonho e pediram autógrafos e fotos. Os moleques foram ver Lobão e saíram dali fãs de Totonho. Me abraçaram e pularam de felicidade quando eu disse que, semanas depois, teria show dos Móveis Coloniais de Acaju. Só moleque bom! Foi naquele momento eu finalmente senti um puta orgulho de tudo isso e mandei aquele sentimento escroto pra casa do caralho.
Os picos de alegria e melancolia se alternavam como se fosse uma patologia, mas era a montanha russa de sentimentos bipolares. Ver o Antcorpus ali com aquele visual trash metal dos anos 80 botando pra fuder, mesmo sendo a primeira banda do domingo, me fez dar um grito de lá de trás, achando aquilo a visão mais bonita do Festival. Uma banda de trash metal do interior do estado fazendo um show com todo o tesão que uma banda de rock precisa ter. Acabou o tesão, acabou o amor, malandro. É assim que se faz.
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Antcorpus no Se Rasgum de 2011. Mostra como é que se faz.
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E na sexta-feira, primeiro dia do evento, eu e Dudu Feijó (outro Se Rasgum que tomou a decisão sensata de cuidar da sua vida) estávamos atrás da housemix esperando pelo show eletrizante do Bidê ou Balde. Ele comentava do show anteiror, do Leoni, falando que aquele sim era um grande songwritter brasileiro. E que fusão legal que foi seu show com o Suzana Flag. Joel, Suzane e Ricardo mereciam isso. Trazer o Leoni foi uma das coisas mais legais que pude fazer nos últimos anos.
Aquela questão do songwritter ficou na minha cabeça. E listei, de imediato, Marcelo Jeneci, Lobão, Leoni, Fábio Trummer e Laurentino. Esses caras estão ficando raros. Como a música pop se realimenta de propostas (financeiras e estéticas) e acaba deixando os grandes compositores de lado. Marcelo Jeneci - o show que emocionou todo mundo no encerramento do 6º Festival Se Rasgum – trouxe de volta isso, a composição que deixa um legado para a música pop, coisa que raríssimos artistas tem a manha de fazer hoje em dia.
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Marcelo Jeneci encerrou a sexta edição cutucando corações
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E se compositor tá virando artigo raro, minhas lágrimas assistindo em casa a apresentação de Laurentino e Os Cascudos foram muito reais. Laurentino merece muito mais do que eu quero falar nesse post. A vitalidade que ele demonstra no palco sempre me comoveu, mas dessa vez senti um certo ar de cansaço e isso me preocupou. São 87 anos de uma vida de caboclo, tocando gaita, compondo roques e dançando magistralmente.
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Laurentino, o maior compositor paraense de rock
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Leoni foi o primeiro a mostrar canções |
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Lobão e seu show de 50 anos a mil |
Depois da queda, veio um coice e depois mais uma queda. Uma virose que pegou de jeito, me deixou no aconchego de uma febre com direito a filmes, discos, visitas e uma reflexão muito serena sobre o que fazer com a minha vida. Esta edição foi, sem sombra de duvidas, a que mais balançou as estruturas, que teve um belo upgrade, mas que mexeu com quem estava calado, que provocou o underground e que serviu para me apresentar pessoas que eu ignorava a existência, mas que agora sei que existem por se incomodar comigo. Uma frase da minha sócia Renée Chalu sintetizava tudo e me acalmava: “se está rolando todo esse incômodo e críticas é porque o Festival é grande”. E é exatamente isso. As pessoas esperam que o Se Rasgum realize seus sonhos pessoais, já que a internet potencializou o grito dos solitários. Mas para mim, o resultado mesmo são os molequinhos que foram com a mãe, que ficaram fãs de Totonho e Os Cabra e El Cuarteto de Nos e que, na malacagem, ainda conseguiram entrevistar o Lobão para um trabalho na escola.
E é por essas e outras que eu viro mulher de malandro.
Até o ano que vem.