quinta-feira, 8 de maio de 2008

Felicidade deslocada em sorriso sacana

Hotel Argentino



Castillo Piria

Janela do quarto de hotel





A felicidade e a paz tem endereço: Piriápolis, município que fica a 95 km de Montevidéu, no estado de Maldonado. Influenciado pelo filme Whisky (que não escondo ser um dos melhores filmes que já vi), deixei o agito do centrão da capital na quarta-feira e entrei no primeiro ônibus que levou à cidadezinha. Ao meu lado um senhor simpático chamado Amílcar me falava sobre sua paixão pelo local. Ele dividia seus dias entre Montevidéu e Piriápolis e dizia que se uma pessoa busca paz, é lá que ela vai achar.

A 30 minutos da badalada Punta de Leste, Piriápolis exala sossego por todos os poros. Da rodoviária vi o Hotel Argentino, que abrigou todas as locações de Whisky naquela cidade. Vibrei. Fui perguntar a diária: 78 dólares o mais simples. Pensei duas vezes se realmente não seria uma boa ficar lá, mas resolvi deixar para um dia em uma lua de mel. Fui para um ao lado, 35 reais com TV a cabo, chuveiro quente, café da manhã e janela para a praia.


No centro de informações turísticas, o rapaz me deu um mapa e explicou aquilo que já estava no automático para paraquedistas como eu. Castelo, morro, bosque etc. Ele me aconselhou o Castillo Piriá, onde viveu o fundador da cidade, Franscisco Piriá. Achei uma boa, afinal, de lá dava para seguir para o Pan de Azucar, um morro bonitão que dava pra ver de longe e uma reserva florestal. Com disposição para a natureza, me dispus a ir andando. Quando falei isso, os dois funcionários do centro de informações turísticas perguntaram em uníssono: ¿Camiñando? Preveniram de que eram seis quilômetros. Dei de ombros, tava a fim de conhecer a cidade.


A primeira hora de pernada foi só deslumbramento. Na segunda, gelei ao encarar o retão que se aproximava para achar o tal do castelo, que ainda não dava sinais de sua existência. Vi uma jovem pedindo carona e reparei que aquilo era de praxe. Mas na frente, depois tirar várias fotos de outro castelo em ruínas, perguntei para uma mulher, no único ponto de ônibus que existia pelo caminho, se o setor onde viveu o tal do Piriá era direto. Ela disse que sim, dando uma risadona e desdenhando de meus longos passos. Sem me intimidar, segui reto. O acostamento acabou e tive que começar a andar pelo estrada. Duas horas de caminhada. E fui. Andei. Cansei. Pensei em esticar o dedão e pedir uma carona, mas resolvi deixar para a volta. Segui em frente e finalmente vi uma placa. Havia chegado. Na frente o aviso broxante: de segunda a sábado aberto ao público das 10 às 17h. Estava sem relógio mas o céu já informava que devia passar das 18h. Examinei os muros laterais e vi que tinha um buraco na tela, provavelmente feito por alguém que também havia dado de cara com os portões fechados. Entrei.
O caminho até o casarão, que quanto mais se aproximava mais apavorante ficava, deixou os pequenos ruídos da estrada calma para trás. O barulho dos meus passos me incomodava. Tirei umas fotos, vi umas ruínas, um vagão de trem abandonado e decidi dar o fora antes que um espírito perdido, contemporâneo ao rei, viesse tirar satisfações comigo pela insistência.
Na volta, um casal se aproximava da frente do castelo, que era um ponto de ônibus. Perguntei se dava para ir ao Pan de Azucar ainda e eles disseram que só se eu fosse louco. E naquela hora eu era o mais cagão de todos. “E ônibus, passa por aqui?”. “Sim, de uma em uma hora”. Logo veio um, que fiz sinal e não parou, gesticulando de que a parada era bem mais a frente. Era onde eu havia pedido informações pra mulher que me sacaneou. Longe pra caralho! Saí andando e comecei a esticar o dedão. Vi que a carona, que achei ser de praxe no local, era só para gatinhas indefesas. Um bigodudo gordo era fora de questão. Desisti daquela merda e sai andando, chegando ao ponto de ônibus já com a noite entrando. Estava congelando de frio, já que havia optado por um casaco leve confiando que o dia não estava lá esses frios. Uma hora depois o busão chega e eu volto ao hotel arrependido da graça.




Take my arm away

Se a sensação de que em Montevidéu as pessoas carregam uma imagem de que pediram para serem esquecidas, Piriápolis é a prova cabal disso. Lojas, hotéis, escritórios imobiliários e diversos estabelecimentos comerciais mantinham suas portas fechadas durante o ano todo. A cidade funcionava só no verão.
Na manhã seguinte, Rubem, o hoteleiro gente boa, me disse que o Cerro San Antônio era algo que eu não poderia deixar de ir. Lembrei de Amílcar recomendar o mesmo. Sai andando de novo. Primeiro subi uma ladeira íngreme. Daí vi que o tal do atalho para subir o Cerro San Antônio estava interditado e fiquei pensando numa solução. Foi então que vi que o teleférico que levava ao topo começou a funcionar. Desci tudo de novo e entrei no brinquedo. Nos primeiros 20 segundos percebi que não era mais aquele garoto corajoso de outrora. Quase me borro de medo, mas não larguei a câmera, filmando e tirando fotos.


Beleza de vista. Foto pra cá, foto pra lá. Do outro lado vi um amontoado de prédios distante e constatei ser Punta de Leste. “Beleza, descendo daqui eu me mando pra lá”. E fui tirar fotos. Umas árvores atrapalhavam o enquadramento e fui subir em um batente para “sacar la foto”.


Lembro quando vi aquele poste de luz ao lado do batente, pensei “será que se eu me apoiar com o braço esquerdo meu ombro sai do lugar? Nah, o dia tá lindo”. Mas a confiança no clima me traiu. Ouvi apenas o estalo e a dor, pela quinta vez, do meu braço esquerdo se deslocando do ombro. “Pô, Deus, tu tá de sacanagem!”. Pensei na cagada que seria descer aquela porra de teleférico com a dor que estava sentindo. Com o braço direito, segurei o esquerdo e corri para o único lugar que parecia ter gente ali: uma lojinha de suvenires. As três moças ficaram aflitas e eu pedi que chamassem uma ambulância. Enquanto duas delas se ajudavam no telefone público, fiquei conversando com a terceira, que se disse fã de Ivete Zangalo, Araketu e Gabriel O Pensador. Não tem jeito, o mau gosto musical ultrapassa fronteiras. Mais de 20 minutos depois, a dor se tornando cada vez mais forte, perguntei o que tinha acontecido e elas disseram que ligaram para uma ambulância, mas que o serviço custaria 2.700 pesos uruguaios, cerca de 270 reais. Agradeci por elas pensarem com o meu bolso. Elas tentavam ligar pra polícia mas só dava ocupado. Pedi um táxi e elas se olharam com uma cara de quem não havia pensado nisso antes. Cinco minutos depois chega Daniel, o salvador.


Me levou ao hospital público, uma casa graciosa no meio de um jardim. Desci me cagando de dor e Daniel ajudando. Disse para ele tirar a grana da minha carteira, o que fez corretamente, mas não se ausentou do ambulatório. Lá o primeiro sinal de eu estava realmente fudido. O médico nunca havia colocado um ombro no lugar.


Expliquei para ele como os outros médicos haviam colocado o meu braço no lugar. Constatei que além de quando estou bêbado, a dor me faz cuspir um espanhol bem razoável. Deitei na cama, e ele começou o processo de esticar o braço e girar para cima até voltar ao lugar. Na segunda tentativa vi que ele estava mais nervoso que eu e falou que era melhor chamar um traumatologista. A enfermeira ligou e ele não estava na cidade. A outra alternativa era ir até a capital Maldonado para receber o atendimento certo. Falei que nem fudendo eu ia e que aquele braço ia voltar ao lugar ali mesmo. Chamou Javier, um enfermeiro cabeludo e boa praça que era mais forte e poderia puxar meu braço com mais vigor. Javier estava com uma risada trancada no rosto fazendo aquele procedimento. Eu me mexia muito e a cama andava. Foi quando o médico pediu para duas as enfermeiras, uma loira e uma ruiva (ruiva de verdade, saca?) se debruçarem em cima de mim para a cama não andar. A ruiva ficou em cima das minhas pernas e a loira na região pubiana. Não era hora para pensar naquilo, mas foi o mais perto que pude chegar de realizar uma fantasia erótica uruguaia.
Lá pela décima tentativa, o médico disse que não tinha jeito e ordenou que eu fosse para Maldonado. Quando ele tentou colocar uma toalha enrolada embaixo do meu braço, no sovaco, lembrei que aquilo poderia ajudar. Já não era mais eu quem estava mandando ali, mas pedi para tentarmos mais uma vez. O médico puxava a toalha pelos dois lados e Javier esticando o braço. Eles ouviram o primeiro click. Ainda não era. Ouviram o segundo e o doutor falou: “Continue, Javier, estoy ovindo más un ‘click’”. E pá! Estalo alto o encaixe. “Goooool de Nacional! Carajo! Esto es muy bueno!”. A risada deles, do taxista Daniel e das enfermeiras hot max misturavam alívio e a minha alegria.


É a melhor sensação do mundo quando o ombro volta ao lugar, melhor que ter filhos, comprar uma casa, vibrar com um gol em final de campeonato e gozar.
Daniel nem cobrou a corrida até o terminal. No caminho, soltei uma gargalhada que me fez pensar na merda que tinha sido aquilo. Daniel emendou nos risos.


No ônibus, de volta a Montevidéu, fui a viagem inteira com um sorriso no rosto, lembrando que havia me livrado do medo que mais me afligia por essas bandas. E a cagada aconteceu da pior forma.


Piriápolis é linda, mas as paz e felicidade que imperam por lá não era para qualquer um. Só que eu deixei um sorriso sacana e de humor negro no rosto dos que acompanharam meu pranto patético.

2 comentários:

Rafael Guedes disse...

Muito bom.

E o legal é que qualquer babaca como a gente consegue fazer uma foto fudida aí.

Carla Arend disse...

Bom mesmo é andar de bicicleta em Piriápolis. Tu chegou a sentar naquele parque que não tem nada? Eu sim, e distribuí restinhos de salgadinhos pras formigas (gigantes, por aquela zona). Mas o castelo de píria foi a maior furada do dia e é pura mentira que garotinhas conseguem carona fácil. Bem, se consegue, mas não é fácil.